A Melodia do Significado: Uma Conversa com Modise Sekgothe
A MELODIA DO SIGNIFICADO
UMA CONVERSA COM MODISE SEKGOTHE
Modise Sekgothe é um poeta, actor, vocalista e percussionista premiado de Joanesburgo, África do Sul. O seu trabalho foi publicado em Home Is Where The Mic Is, uma antologia de poesia da Botsotso Publishers. Os seus prémios incluem: Word N Sound Innovation in Poetry Award 2015 e 2016, o WNS Showcase of the Year Award 2014 e 2015, bem como o prémio WNS Perfect Poem Award 2015. O seu trabalho em formato áudio inclui um EP de poesia e música chamado DIPOKO tsa DIPOKO e um álbum a solo chamado Meera Me. Modise já fez apresentações no Split This Rock Poetry Festival (Washington, D.C.), Speak Out Loud Festival, Grahamstown National Arts Festival e outros.

APRESENTADO POR JALIYA THE BIRD
Esta conversa teve lugar via WhatsApp.
Jaliya: Olá, Modise. Muito obrigada por teres aceitado o meu convite para esta conversa. Estou muito feliz, é um prazer.
Gosto das muitas camadas do teu trabalho, é como mergulhar em galáxias. E sinto isto não só quando te ouço ou assisto, mas também enquanto te leio (embora a escrita não traga o teu som, que tão facilmente leva alguém a viajar), porque as tuas palavras têm substância, elas carregam peso. Acho que o teu trabalho é íntimo, e isto o torna numa experiência espiritual.
Como é que surgiu? De onde vem o teu estilo de escrita e o que te levou a combinar todos os diferentes elementos e camadas que trazes no teu trabalho de interpretação?
Modise: Olá, Jaliya. Obrigado pelo convite e pelo teu interesse em interagir com o meu trabalho.
De um modo geral, as influências centrais na minha abordagem da escrita e da interpretação da poesia estão enraizadas no meu fascínio pela música rap, teatro, literatura espiritual e auto-introspecção.
Fui, de muitas maneiras, levado à poesia pela música rap, particularmente o rap underground ou abstracto, que é muito mais poético na sua abordagem, certamente mais do que o som típico/comercial que se pode imaginar quando se pensa em rap/hip-hop. Quando me perguntam quem são os meus poetas favoritos, é mais correcto mencionar os rappers Aesop Rock e Hymphatic Thabs antes de dizer Rumi e Pablo Neruda. Isto é para dizer que as influências mais fortes no meu trabalho são primeiro dos músicos antes de serem dos poetas. Como resultado, nunca fui capaz de divorciar a música do meu processo e da própria poesia. Em relação ao processo, o primeiro lugar a que vou antes de chegar a qualquer poema é à música, seja na forma de rap, de jazz ou de alguma forma de música clássica. A música existe antes de eu escrever até à conclusão do trabalho. É da música que surgem as palavras e, de alguma forma, é precisamente à música que elas regressam. Ou seja, de alguma forma, abordei inconscientemente escrever poesia da forma como um letrista aborda a escrita de canções. A música acaba por encontrar o seu caminho para a interpretação da poesia, quer ao vivo quer em contexto áudio, onde a música da poesia casa com a da canção propriamente dita, quer cantada por mim ou em colaboração com outros músicos.
Essencialmente, os aspectos mais empolgantes da poesia para mim residem na sua musicalidade, nos dispositivos baseados no som e no ritmo. E depois, claro, o significado tem a sua própria melodia, as narrativas têm o seu próprio tom, todas as camadas de som, canção e história se juntam no que se espera que seja, pelo menos, algo que alcance a harmonia sagrada.
O aspecto da performance do meu trabalho é muito influenciado pela minha experiência de fazer teatro. Isto contribuiu muito para a minha compreensão de performance em geral, bem como no contexto da poesia, influenciando, assim, as formas específicas de encarnar e articular a poesia, uma vez que compreendi as várias mecânicas por detrás da expressão performativa.
Outra cartilha fundamental no meu pensamento é a minha imersão em várias formas de literatura espiritual, que constituíram a maior parte da minha leitura e prática ao longo dos anos. Assim, de certa forma, penso que a minha orientação é como um buscador de sentido e propósito e a exploração da natureza espiritual. O trabalho tenta escavar através das muitas camadas de consciência que existem entre o Eu e o Todo unificado.
Juntamente com isto, a direcção de grande parte do meu trabalho tem sido introspectiva. Muito do que projecto é reflectido de algum lugar interior, provavelmente do menos acessível dos lugares, talvez o que se consideraria mais pessoal. É minha opinião que no esquema maior não há nada verdadeiramente pessoal, porque há pouco verdadeiramente original na experiência humana. Parece-me que o mais verdadeiro que posso ser comigo mesmo é o mais verdadeiro que posso ser com o meu público. Quanto mais verdadeiro fico, mais perto estou de mim e do meu público. Parece uma conclusão lógica que o pessoal na sua essência é o universal.
Jaliya: Penso que somos bem parecidos no que toca às influências que nos comovem. Também sou da escola de rap/hip-hop, e os rappers são alguns dos meus artesões de palavras favoritos. Tive uma relação complicada com o hip-hop, tal como muitas outras mulheres, por razões óbvias. Como adulta (de certa forma), posso exercer discernimento e optar apenas por consumir activamente um certo tipo de conteúdo, e isto me traz alguma paz.
Gosto do que dizes sobre música, e faz tanto sentido. Obrigada pela descrição.
O teatro, a vulnerabilidade, a introspecção… recordam-me outro poeta cujo trabalho eu gosto bastante. Algo interessante aconteceu recentemente quando lhe disse que iria entrevistar-te.
“Essencialmente, os aspectos mais empolgantes da poesia para mim residem na sua musicalidade, nos dispositivos baseados no som e no ritmo. E depois, claro, o significado tem a sua própria melodia, as narrativas têm o seu próprio tom, todas as camadas de som, canção e história se juntam no que se espera que seja, pelo menos, algo que alcance a harmonia sagrada.”
Tinha uma lista de coisas que lhe queria mostrar e pressionei o play com entusiasmo. Ele ouviu-te durante 7 segundos e disse: “ok, já chega”, eu olhei para ele com olhos curiosos, e ele disse em defesa: “tenho a certeza de que um dia o vou conhecer. Cena fixe!” Não me lembro das minhas palavras exactas, mas lembro-me de dizer “Estás a ferir os meus sentimentos!” Ele acabou por assistir a uma performance completa. Depois de ter terminado, disse que tinha captado a semelhança e era precisamente por isso que não queria ouvir mais, porque estava num espaço delicado, onde estava a desenvolver algo, e é extra-cauteloso quanto ao que consome, particularmente quando se trata de trabalho semelhante ao que faz. Prosseguiu, esclarecendo o seu ponto de vista, perguntando-me: “como é que geres o que vem de ti (os teus pensamentos e ideias) versus o que vem de outras pessoas que estás a ouvir e a ler activamente?”
Eu olhei para ele, não tinha uma resposta, não uma resposta clara. E gostaria de te fazer a mesma pergunta. Como te manténs original, considerando este perigo de nos tornarmos os artistas que nos inspiram, simplesmente replicando-os nas nossas próprias palavras e perdendo-nos no processo? Como é que sustentas a tua essência?
Modise: É interessante saber que também foste influenciada pelo rap. Que artistas dirias que te causaram mais impacto?
Estou muito interessado em ver Angola em breve, por isso o teu amigo e eu talvez nos conheçamos de facto.
Posso identificar-me com a sua apreensão em aceitar qualquer coisa que possa interferir no processo do seu desenvolvimento de uma voz específica. É uma estratégia necessária, que utilizei em certos momentos do meu percurso, quando pude perceber que a voz de um determinado artista estivesse a escapar pela minha garganta.
Não é algo sobre o qual me tenho debatido ou mesmo pensado muito recentemente. Tenho estado quase completamente isolado, sem consumir muita coisa, sem me interessar por muito, enquanto sigo qualquer que seja a nuvem que me esteja a inspirar no momento.
Fundamentalmente, penso que a originalidade na arte é uma consequência da originalidade no ser. O ser humano original é-o, então, em pensamento e em acção. Este indivíduo vê o mundo da sua maneira muito específica e retrata-o como tal. Abraça os aspectos mais peculiares de si próprio, as partes mais dessincronizadas com a canção comum e, portanto, mais arriscadas de executar. É precisamente neste lugar perigoso que a verdadeira fonte existe. Encontrá-la leva-nos de volta à introspecção rigorosa e à autoconsciência. O processo é cavar em si mesmo para encontrar a base da sua mensagem e a sua verdade e depois descobrir como deve parecer e soar.
Jaliya: A complexidade da minha relação com o hip-hop não é alimentada apenas pela relação do hip-hop com as mulheres, mas também por ser a banda sonora de tantos momentos e memórias na minha vida. O hip-hop é um lugar sagrado para mim, mas cheio de sentimento de saudade, nostalgia, perda. Preciso de me desligar de vez em quando. E a tua pergunta, por mais simples que possa parecer, fez-me pensar em algumas coisas.
Quando era adolescente, ouvia muito Valete, Phay Grand o Poeta, Gabriel o Pensador, Azagaia (rappers lusófonos), K’naan, Immortal Technique, Lauryn Hill…
Angola espera por ti, aparece.
Originalidade na arte como consequência da originalidade no ser, eu adoro isto. Como dizes, é um procedimento de rigorosa introspecção e autoconsciencialização. Isto me faz pensar no isolamento e na solidão… a vida é tão pessoal, e este processo de escavar e descobrir a essência é um assunto individual. Outra coisa que me vem à mente é o teu texto A Noite Negra da Alma, penso que toca maravilhosamente na solidão que vem com o ofício. Tirei as minhas próprias conclusões sobre a obra, mas gostaria de ouvir de ti sobre este texto, além disso, estou interessada em saber como este isolamento, introspecção a que a arte nos sujeita tem afectado as tuas relações, particularmente com pessoas fora das artes.
Modise: A menção do Immortal Technique realmente entusiasma-me, a sua música desempenhou um papel significativo nos meus anos de formação como artista. Também estou bastante curioso sobre os rappers lusófonos que mencionas e certamente vou ouvir. Há algo de bastante belo na palavra “saudade”, tive de a pesquisar no Google, é claro, (risos). A experiência de ouvir rap é sempre uma saudade agradável para mim.
A Noite Negra da Alma é uma reflexão sobre o “apelo à aventura”, que é característico da experiência humana individual. A perspectiva é da vida como uma espécie de “viagem do herói”, que se apresenta sob a forma de uma batalha entre o seu eu superior e o seu eu inferior, bem como a tensão entre as suas aspirações superiores em relação aos seus passos miúdos. A narrativa esforça-se em reconhecer a tarefa quase insuperável de superar a voz auto-sabotadora na cabeça, tal como é o produto da baixa auto-estima e da dúvida de si próprio. Esta voz reflecte também a voz colectiva do mundo à sua volta, a sua bem-intencionada família, os amigos e amados, que projectam em si os próprios medos e são obrigados a castigá-lo por ter a audácia de mergulhar no deserto dos seus sonhos, pois é precisamente isso o que todos desejam, mas têm demasiado medo para se atreverem. Estas são as vozes que ecoam na sua cabeça à medida que se atreve a subir em direcção aos picos mais altos, forçando o seu caminho através das probabilidades, enquanto teme o ridículo resultante que certamente se seguirá à sua falha. E, assim, além de combater os elementos, também está em guerra com os próprios demónios, internos e externos, que são de alguma forma uma ameaça maior do que o desafio imediato.

Seguir a sua verdade manifesta-se frequentemente como um desvio do caminho colectivo. O colectivo, contudo, não gosta dos desviados (risos). Ressente-se deles e, se não os pode desencorajar o suficiente, amaldiçoa-os ao infortúnio, a algum destino que lhes deveria suceder precisamente por terem escolhido seguir o próprio caminho. Ainda assim, os desviados fogem, sozinhos e “condenados” ao fracasso, temendo a vergonha pessoal e pública. O colectivo diz: “Pensas que tu és quem? Quem te disse que és especial? Vai em frente, e vamos ver onde tudo acaba”.
O conceito da A Noite Negra da Alma é emprestado de várias ideias nas literaturas espirituais do mundo, mas também no Monomyth, de Joseph Campbell, que é outra palavra para A Viagem do Herói. Interpretei-a como definindo a parte mais profunda, mais escura e mais brutal de qualquer viagem significativa, resultando muitas vezes na morte e no renascimento do indivíduo. Surge alguém triunfante e transformado ou, infelizmente, engolido pela tragédia.
No seu poema Go All The Way, Charles Bukowski fala ao desviante e diz: “Se vais tentar, vai até ao fim […]
/ Pode significar zombaria, escárnio, isolamento /
Isolamento é o presente. /
Todos os outros são um teste à sua resistência, ao quanto quer realmente fazê-lo […]
/ É a única boa luta que existe.”
Isto de certa forma encapsula a minha experiência, pois diz respeito à forma como o meu caminho tem afectado a minha relação com o mundo à minha volta.
Jaliya: Gosto muito de te ter pedido para falar mais sobre A Noite Negra da Alma, porque, na realidade, é maior do que eu pensava.
Falas de uma “tensão entre aspirações mais elevadas em relação a passos miúdos”. E agora estou a pensar numa entrevista que deste a Bubblegum Club em 2017, na qual dizes: “Há um período em que o peso do que já fizeste interfere de certa forma com o que és capaz de fazer para avançar”. Como é que isto tem sido para ti? O que é esta interferência? Em que momento te tornaste ciente do “peso” do teu trabalho?
Além disso, não me esqueço do facto de teres sido galardoado com o Prémio Inovação Sonora em Poesia pela Word N Sound, em 2015 e 2016. Qual é a tua relação com a inovação? E como manténs o teu trabalho refrescante e avanças, tendo em conta algumas das grandes coisas que já fizeste?
Modise: Penso que a tensão entre o trabalho passado e o que se deve seguir é natural para a maioria dos artistas, devido à tentação persistente de duplicar o que já funcionou.
Há também a pressão da expectativa, quanto mais o artista cria com sucesso, mais se espera de si, tal como ele espera de si próprio. Isto pode interferir na liberdade do processo criativo, o que requer uma certa inocência e uma “mente de principiante”, que é muito difícil de reciclar com o passar do tempo.
Assim, de vez em quando, caio num estranho feitiço de não conseguir tirar o público da minha cabeça enquanto crio, o que torna a própria criação impossível, se não repetitiva.
No que diz respeito à inovação, ela serve certamente como um ideal. Sempre me interessei mais pela forma como a poesia se manifesta no corpo, por meio da voz, na música e em vários outros meios de expressão à minha disposição como indivíduo, mas também por meio da colaboração com artistas de todos os géneros. Isto me levou a explorar as formas em que se pode expandir, através do cinema, animação, fotografia e teatro.
O processo de escrever poesia e descobrir como apresentá-la sempre foi experimental para mim, isto foi mais no início do que é agora, mas tento o meu melhor para manter essa abordagem na raiz do processo e do meu pensamento em torno do trabalho. Isto faz um trabalho decente de me ajudar a fugir da armadilha da fórmula.
Jaliya: Gostei das colaborações que já fizeste.
Adoro arte sobre cidades: Gosto de ouvir canções, ler poemas, ver pinturas, ver documentários, etc. Uma das minhas canções favoritas sobre Luanda é Tanto, de Aline Frazão, adoro a letra. Naturalmente, interessei-me imediatamente por Metropolar. Não consigo explicar porque sou tão fascinada por histórias de cidades.
O teu projecto de colaboração com Itai Hakim, Children of the Wind, é muito rico, parece que se está a fazer uma refeição deliciosa, é nutritivo. Adoro como descreves o vosso som como “duas canções tocando ao mesmo tempo, mas fundindo-se de forma tão perfeita que não se nota”, esta “confusão com uma mensagem muito clara” de que falas é também como a interpretei: os meus sentidos sentem-se puxados para direcções diferentes, mas há harmonia. Esta “fusão” de sons… é assim que sabes que uma colaboração vai funcionar? Como é que escolhes as pessoas com quem trabalhas? O que é que registas que te faz sentir que queres trabalhar com uma pessoa em particular?

Modise: Tanto é uma bela canção. Mesmo sem compreender a língua ou conhecer Luanda, sinto-me atraído pelas melodias e visuais, em direcção ao que imagino ser alguma essência da cidade que só é conhecida por um verdadeiro habitante da mesma.
Sinto-me genuinamente inspirado por todos com quem trabalhei e admiro-os. Talvez seja desnecessário dizer que é sempre aí que começa. Contudo, há muitos artistas que me inspiram e com os quais nunca poderia trabalhar. Aqueles com quem consegui criar algo parecem falar a mesma língua que eu falo, alguma língua de algum lugar distante onde parecemos reconhecer-nos uns aos outros. A pessoa sabe isto na primeira vez que os vê ou ouve e depois confirma à medida que se juntam e se encravam ou partilham ideias. O processo desenrola-se organicamente, e as peças caem no lugar de uma forma curiosa, que não pode ser bem explicada.
Por outro lado, há alturas em que se tenta trabalhar com alguém, e este nunca se junta completamente. O processo começa devagar e nunca se completa, até que acaba por esfriar.
As pessoas com quem trabalho são também, normalmente, minhas amigas antes do trabalho, ou à medida que vamos avançando. Portanto, se não nos conseguirmos ligar fora do trabalho, definitivamente não conseguiremos fazê-lo dentro dele.
Jaliya: Adoro arquivar e manter os registos das coisas, funciono assim como pessoa. Naturalmente, tenho vários diários e tenho cadernos de notas aleatórias, para anotar tudo o que se possa imaginar. Há cerca de duas semanas, deparei-me com uma ideia que tive em 2014, a coisa nunca pegou, mas recentemente estive envolvida em algo que era a mesma ideia num outro formato. Deu-me uma sensação acolhedora — a sensação de que estou no caminho certo e de que alguns sonhos não devem ser esquecidos, mesmo que a janela para os realizar pareça fechada, só precisamos de os adaptar ao contexto. Tendo dito isto, gostaria de saber: sentes-te no caminho certo? Olhando para algumas das aspirações que tinhas há uns anos, fizeste o que querias fazer? Estás onde querias estar? Onde estás? O que tens andado a fazer ultimamente?
Modise: Sinto-me, de alguma forma, no caminho certo. Tenho feito muito de que me orgulhe e estou grato por ter tido as oportunidades para o fazer. No entanto, ainda há muito que fazer. Ocorreu-me que vai demorar muito tempo a construir e manifestar muito daquilo para o que me sinto chamado. À luz disto, desenvolvi recentemente o tipo de paciência necessária para o tipo de caminho que percebo estar a percorrer.
Onde estou agora é uma espécie de espaço liminar entre duas fases, tanto na minha vida pessoal como no trabalho. Tenho vindo a juntar luz e a descarregar o resto, com a esperança de uma expansão que produza o tipo de alinhamento de que precisarei para avançar.
Passei grande parte do último ano exclusivamente a escrever, período em que estive afastado dos palcos voluntariamente e por imposição. Estou a formular o texto para a minha colecção de estreia, que estou a permitir que se revele dentro do seu próprio tempo.
Jaliya: Parabéns por tudo o que foste capaz de alcançar. Uma colecção de estreia soa certamente entusiasmante. Estou feliz por ti e ansiosa pela obra, boa sorte!
Já para terminar, o que tens estado a escrever destina-se sobretudo à colecção? Como escolhes que obra é apresentada a um público? Para alguém que escreve de um lugar de profunda introspecção e apresenta um trabalho pessoal, cru e vulnerável, onde fica o limite? Onde fica a tua privacidade? Como é que sabes se uma determinada história, pensamento ou poema deve ou não ser consumido publicamente?
Modise: Ocorreu-me que as partes mais pessoais e, portanto, privadas das nossas vidas são, efectivamente, as mais universais. É a este nível que somos mais parecidos e, portanto, mais significativamente ligados. Esta ligação é mais significativa do que as nossas preciosas pequenas histórias pessoais, que estamos tão obcecados em manter privadas. É um absurdo, porque, no fundo, não há realmente nada de especial na narrativa individual supostamente sagrada, a menos que as suas lições sejam partilhadas com o colectivo de alguma forma significativa. Por esta razão, tenho estado disposto a partilhar muito mais do que aquilo com que deveria estar à vontade como ser social. Estou de alguma forma convencido de que o social é suplantado pelo espiritual. O espiritual está embutido nas nossas histórias e é desencadeado pela nossa capacidade de as transcender e de transformar a base metal das nossas vidas básicas numa espécie de ouro, sob a forma de lições que extraímos da experiência.
É complicado para mim, porque sou um ser social e estou rodeado por outros, por isso, por vezes, senti um desconforto, pois os humanos serão humanos e utilizarão qualquer informação que recolherem sobre outrem como material para fofocas ou julgamento. No entanto, isto ainda me parece um risco profissional controlável, ainda estou bastante disposto a andar na corda bamba e a ver até aonde posso ir para dentro da masmorra profunda e escura para ter dela alguma coisa significativa que possa partilhar com as pessoas (risos).
Jaliya: Obrigada por ires até à masmorra profunda e escura e partilhares narrativas, de ler e ouvir, que têm sido significativas.
Obrigada por tudo o que partilhaste aqui, foi um prazer ouvir-te.
Obrigada pelo teu tempo, Modise.
*Revisão do texto feita por Hondina Rodrigues.
Crédito fotográfico para imagem em destaque de Modise Sekgothe: Jonathan B. Tucker.

Jaliya The Bird é uma escritora, poetisa, performer de Angola. A sua obra explora o ser Mulher, Negra, Africana dentro do conceito de [Inter]Sessions: UnSpoken Words. [Inter]Sessions é provocar, celebrar, libertar emoção e pensamento através da narração de histórias, a escrita, poesia e arte de representação. A artista é apaixonada pela liberdade e autenticidade, o viver a vida a partir da base de quem somos à medida que respondemos às causas que nos (co)movem. O seu premiado filme de spoken word-Idle Worship, produzido por Ariel Casimiro pela Usovoli Cinema, já foi exibido em vários festivais de poesia. Pode ler o seu trabalho aqui www.jaliyathebird.com